Antes de compartilhar as idéias que estão resumidas pelo título desse post, gostaria de apresentar o seguinte diálogo do quinto episódio da terceira temporada de Breaking Bad, intitulado Mas¹ (haverão spoilers da série a seguir). Em cena, Gustavo Fring (personagem interpretado pelo ator Giancarlo Esposito) apresenta para o químico Walter White (Bryan Cranston) um laboratório subterrâneo que foi projetado com o objetivo de fabricar toneladas de metanfetamina, e lhe oferece o emprego de ser o seu operador. WALT Desculpa. A resposta ainda é não. Tomei uma série de decisões muito ruins e não posso tomar outra. GUS Por que você tomou essas decisões? WALT Pelo bem da minha família. GUS Então não foram más decisões. O que um homem faz, Walter? Um homem sustenta sua família. WALT Isto custou minha família. GUS Quando você tem filhos, você sempre tem família. Eles sempre serão sua prioridade. Sua responsabilidade. E um homem? Um homem provê. E ele faz isso mesmo quando não é apreciado ou respeitado... ou mesmo amado. Ele simplesmente suporta, e ele faz. Porque ele é um homem. Mesmo que esteja subentendido nesse diálogo questões que você já deve ter captado, permita-me resumir parte da história que envolve esses personagens e como a interpretação distorcida desse discurso serve hoje de estímulo a uma das comunidades mais misóginas e machistas da internet, os “Red Pill”. A única motivação de Gus na série é a vingança. Durante anos, Gustavo orquestra um plano de vingança contra Hector Salamanca, após este assassinar Max Arciniega (namorado de Gus) durante uma reunião do cartel do México. Para manter-se próximo do chefe do cartel (Don Elalio) e ganhar mais relevância e aproximação da organização criminosa, uma das etapas do plano foi a construção do laboratório subterrâneo de produção de drogas que é ofertado a Walter, que seria seu supervisor e principal operador. Não importa família, dinheiro, moral ou ética, apenas a vingança importa e, para isso, todas as mentiras, manipulações, subornos, lavagem de dinheiro e assassinatos se tornam artifícios utilizados estrategicamente em uma progressão paciente. Empurrando peões, torres, cavalos e bispos num tabuleiro de peças entrelaçadas, o recursos mais valioso de Gus nunca é explicitamente revelado, a sua astúcia é camuflada. Walter, por outro lado, é a imagem do homem fracassado da classe média. Sua força motriz é o ressentimento. Suas ações podem ser interpretadas como uma vingança contra a vida que levou, as escolhas ruins, os caminhos tortuosos e as dificuldades financeiras. Escondendo-se por trás da falsa justificativa de que precisa deixar dinheiro para sua família antes de morrer, Walt vive uma jornada criminosa que culmina na destruição de tudo aquilo que ele amava. Perto do fim, entretanto, ele admite que fez tudo pela euforia. Quando esses dois se encontram e a oferta de emprego é apresentada (diálogo apresentado no início), o texto do roteiro informa que “Walt está se agarrando ao que resta da sua vida familiar, precisando desesperadamente ouvir tudo aquilo que Gus lhe diz. Ele está comovido e muito dividido. Não há falsidade no tom de Gus. E não é de se admirar, já que ele é o melhor tipo de vendedor - o tipo que acredita totalmente no que está vendendo. Pensativo, Walt reflete no que deve ser uma das últimas grandes decisões da sua vida”¹. Apresentando a história dessa maneira, fica evidente que Gus manipula Walt a fazer parte da sua organização, comovendo-o com um discurso piegas que somente alguém particularmente frustrado, emocionalmente frágil e com pouca consciência social seria capaz de comprar. Mas para um certo grupo de pessoas a imagem do homem médio fracassado é um arquétipo que lhes define e essas ideias vendidas por Gus reafirmam uma visão de vida. Sequestrando a expressão e seu sentido original apresentado no filme Matrix (1999), o movimento de homens que se auto-intitulam “Red Pill” tem dois pilares ideológicos: a desconfiança completa nas mulheres e a crença de que o valor do homem é definido pela quantia de dinheiro que ele detêm. Com um rótulo millennial, esses fundamentos velhos (machismo e capitalismo) se fundem para construir uma visão de mundo nem um pouco contemporânea, que eles convictamente acreditam ser “a verdade”: todas as mulheres se relacionam exclusivamente por interesse. Dividindo os homens em alfas (red pills, os que conhecem e vivem de acordo com “a verdade”) e betas (blue pills, que não conhecem ou que conhecem mas vivem em desacordo com “a verdade”), a ideologia propaga-se nas redes sociais comumente com memes, cortes de podcasts e clips de cenas de filmes e séries. Tommy Shelby, Coringa, Patrick Bateman, Tony Stark e, como esperado, Walter White são alguns dos personagens “alfa” mais utilizados pelos perfis que compartilham os pensamentos dessa ideologia. Mesmo sendo exemplos do que não seguir e suas obras tendo forte teor crítico sobre masculinidade tóxica, machismo e racismo estruturais, influência negativa do estado nos cidadãos e capitalismo em geral, parcelas das falas desses personagens são sequestradas e utilizadas com o intuito de propagar discursos misóginos e machistas. É puro sincretismo, e a perda do sentido original passa a ser inspiração. O arquétipo do homem médio fracassado que parece representar o grupo Red Pill na realidade é uma projeção, e o que faz dessa fantasia um fetiche é o suposto sucesso desses personagens que os convertidos desejam também conquistar. Eles querem ser vistos pela sociedade de forma análoga, mas quem se enxerga em Walter White o faz patologicamente. Walt e Gus fracassaram. Seus objetivos são conquistados, a vingança é atingida e o dinheiro é adquirido, mas pra eles não fica uma vida para aproveitar. Walter destrói sua família, sua esposa e filho terminam a série sentindo desprezo e tristeza. Quem não consegue desenvolver relações saudáveis porque enxerga seres humanos como objetos, cria rivalidades e oprime para sentir-se confiante e superior aos outros, não se permite estar vulnerável pois encara esse estado como aflitivo e decide antagonizar mulheres enquanto quer ser acolhido por elas não surpreendentemente gera um resultado: a rejeição! O fim é invariavelmente o mesmo. O esposo e o pai sustentam, mas isso não os torna esposo e pai. Carinho, cuidado, escuta, presença, ensinamentos e aprendizados fazem parte dessa experiência que (e isso é muito importante) não precisa ser vivida isoladamente. Este é o primeiro texto de uma série de análises sobre masculinidade no cinema que pretendo apresentar por aqui. Conto com sua leitura atenciosa e espero que de alguma maneira essas reflexões agucem seus sentidos na hora de consumir filmes e séries futuramente. Até breve e lembre-se: amar com o outro dá um pouco mais de sentido à vida. BREAKING BAD "Mas", Episode #305, Written by Moira Walley-Beckett, Directed by Johan; acesso em: <https://assets.scriptslug.com/live/pdf/scripts/breaking-bad-305-mas-2010.pdf>